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sábado, 16 de maio de 2009

A Flor e A Náusea



Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cizenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.




Carlos Drummond de Andrade

Reflexões Paradoxais


Sentir é criar.

Sentir é pensar sem idéias, e por isso sentir é compreender,
visto que o Universo não tem idéias.

- Mas o que é sentir?

Ter opiniões é não sentir.

Todas as nossas opiniões são dos outros.

Pensar é querer transmitir aos outros aquilo que se julga
que se sente.

Só o que se pensa é que se pode comunicar aos outros. O que
se sente não se pode comunicar. Só se pode comunicar o valor
do que se sente. Só se pode fazer sentir o que se sente. Não
que o leitor sinta a pena comum. Basta que sinta da mesma
maneira.

O sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento
fecha a alma.

A lucidez só deve chegar ao limiar da alma. Nas próprias
antecâmeras do sentimento é proibido ser explícito.

Sentir é compreender. Pensar é errar. Compreender o que
outra pessoa pensa é discordar dela. Compreender o que outra
pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa é de uma grande
utilidade metafísica. Deus é toda a gente.

Ver, ouvir, cheirar gostar, palpar - são os únicos
mandamentos da lei de Deus. Os sentidos são divinos porque
são a nossa relação com o Universo Deus.

Agir é descrer. Pensar é errar. Só sentir é crença e
verdade. Nada existe fora de nossas sensações. Por isso agir
é trair o nosso pensamento.

Não há critério da verdade senão concordar consigo próprio.
O universo não concorda consigo próprio, porque passa. A
vida não concorda consigo própria, porque morre. O paradoxo
é a fórmula típica da Natureza. Por isso toda a verdade tem
uma forma paradoxal.

Afirmar é enganar-se na porta.

Pensar é limitar. Raciocinar é excluir. Há muito que é bom
pensar, porque há muito que é bom limitar e excluir.

Substitui-se sempre a ti-próprio. Tu não és bastante para
ti. Sê sempre imprevinido por ti-próprio. Acontece-te
perante ti-próprio. Que as tuas sensações sejam meros
acasos, aventuras que te acontecem. Deves ser um Universo
sem leis para poderes ser superior, acontecem. Deves ser um
universo sem leis para poderes ser superior.

São estes os princípios fundamentais do sensacionalismo.

Faze de tua alma uma metafísica, uma ética e uma estética.
Substitui-te a Deus indecorosamente. É a única atitude
realmente religiosa. (Deus está em toda a parte exceto em si
próprio.)

Faze do teu ser uma religião ateísta; das tuas sensações um
rito e um culto.


Fernando Pessoa